
Nos últimos anos, a medicina translacional tem avançado de forma impressionante na compreensão das conexões entre diferentes sistemas do corpo humano.
Um dos temas que mais tem despertado interesse entre pesquisadores e clínicos é o papel da microbiota intestinal como elo entre distúrbios aparentemente distintos, como o transtorno do espectro autista (TEA) e a hipertensão arterial sistêmica (HAS).
Surpreendentemente, essas duas condições compartilham fatores patofisiológicos mediados pelo intestino, revelando um universo interligado por processos inflamatórios, metabólicos e neuromodulatórios.
O que é microbiota intestinal?
A microbiota intestinal humana é composta por trilhões de microrganismos, predominantemente bactérias, que habitam o trato gastrointestinal.
Ela começa a se formar ao nascimento e sofre influência da dieta, do estilo de vida, do uso de antibióticos e de fatores ambientais.
Estima-se que o intestino abriga mais genes bacterianos do que todas as células humanas somadas, constituindo o que muitos chamam de “segundo cérebro”.
Além de auxiliar na digestão e absorção de nutrientes, a microbiota atua como um órgão endócrino e imunomodulador, produzindo substâncias como:
- Ácidos graxos de cadeia curta (SCFAs), como o butirato, propionato e acetato
- Neurotransmissores, como serotonina e GABA
- Citocinas reguladoras que interagem com o sistema nervoso entérico, cérebro e rins
Quando ocorre disbiose — o desequilíbrio da composição e funcionalidade da microbiota — surgem repercussões sistêmicas que vão muito além do trato gastrointestinal.
Microbiota e Autismo: o elo neuroimunológico
Pesquisas indicam que crianças com TEA apresentam perfis únicos de microbiota intestinal, com menor diversidade bacteriana e alterações em grupos específicos:
- Aumento de Firmicutes e redução de Bacteroidetes
- Queda na produção de SCFAs, especialmente o butirato, que tem função anti-inflamatória e neuromodulatória
- Aumento da permeabilidade intestinal e do processo inflamatório neuroimune
Essas alterações podem contribuir para:
- Neuroinflamação crônica, prejudicando o desenvolvimento neurológico
- Ativação imune persistente, influenciando o comportamento e cognição
- Sintomas gastrointestinais, altamente prevalentes em TEA, como constipação e dor abdominal
Intervenções clínicas com probióticos, prebióticos e transplante de microbiota fecal (FMT) vêm mostrando resultados encorajadores.
Um estudo piloto publicado em 2020 apontou melhora de até 66% nos sintomas gastrointestinais e redução de até 50% nos comportamentos autísticos, após intervenção com FMT.
Referência: Vuong HE & Hsiao EY, Biol Psychiatry, 2017; Kang DW et al., Microbiome, 2020.
Microbiota e Hipertensão: um fator oculto na regulação da pressão arterial
A hipertensão, uma das principais causas de morbimortalidade no mundo, tem sido tradicionalmente associada ao excesso de sal, obesidade, estresse e fatores genéticos.
No entanto, novas evidências revelam que a microbiota intestinal exerce um papel-chave na regulação da pressão arterial:
- SCFAs atuam sobre receptores GPR41 e GPR43, influenciando o tônus vascular e a secreção de renina
- A disbiose reduz a produção de butirato, comprometendo a função endotelial
- A inflamação intestinal sistêmica ativa o sistema nervoso simpático, elevando a pressão arterial
Um experimento marcante mostrou que a transferência de microbiota de ratos hipertensos para normotensos resultou em aumento de até 26 mmHg na pressão arterial dos receptores. Em humanos, metanálises sugerem que o uso de probióticos pode reduzir modestamente a pressão sistólica em 2 a 5 mmHg — um impacto comparável a algumas intervenções farmacológicas iniciais.
Referência: Muralitharan R et al., Hypertension, 2020; Yang T et al., Circulation Research, 2017.
O que Autismo e Hipertensão têm em comum?
Embora sejam condições com apresentações clínicas distintas, TEA e HAS compartilham mecanismos fisiopatológicos mediados pela disbiose intestinal:
- Inflamação crônica sistêmica de baixo grau
- Ativação de respostas imunes anormais
- Produção desregulada de SCFAs
- Disfunção do eixo intestino-cérebro e intestino-rim
- Estresse oxidativo e neuroinflamação
Essas semelhanças reforçam a importância de compreender o intestino como um órgão central na integração entre saúde mental, imunológica e cardiovascular.
Abordagens terapêuticas emergentes
A medicina integrativa tem investido em estratégias baseadas na modulação da microbiota como recurso terapêutico para múltiplas condições:
- Probióticos específicos: cepas como Lactobacillus plantarum, Bifidobacterium infantis e Akkermansia muciniphila
- Prebióticos: fibras solúveis como inulina, FOS e goma guar
- Pós-bióticos: derivados bacterianos e SCFAs isolados
- Transplante de microbiota fecal (FMT): com protocolos cada vez mais rigorosos
- Intervenção nutricional: dieta mediterrânea, rica em fibras e polifenóis
Essas abordagens devem ser integradas a um plano individualizado, considerando o histórico clínico, genético, metabólico e ambiental de cada paciente.
A compreensão de que o intestino atua como um centro de comando imunoneuroendócrino revoluciona o modo como tratamos doenças crônicas complexas.
Tanto o autismo quanto a hipertensão compartilham, na raiz, alterações inflamatórias, imunológicas e metabólicas que têm como origem (ou como grande modulador) a microbiota intestinal.
A medicina do futuro será, sem dúvida, aquela que reconhecer o potencial terapêutico do microbioma e integrá-lo ao cuidado clínico. Investir na saúde intestinal é investir na saúde integral.
Referências:
Vuong HE & Hsiao EY. Biological Psychiatry, 2017.
Kang DW et al., Microbiome, 2020.
Muralitharan R, Marques FZ. Hypertension, 2020.
Yang T et al., Circulation Research, 2017.
NIH: National Library of Medicine (PubMed Central).